Joana Ruas. “Crónicas Timorenses”

Un texto, en portugués, fragmento del libro “Crónicas Timorenses” de Joana Rúas, quien dio a conocer recientemente su obra entre el público lisboeta. El literato Pires Laranjeira nos habla del libro.

 

 

 

Joana Rúas

AS VICISSITUDES DA REPÚBLICA NAS CRÓNICAS TIMORENSES DE JOANA RUAS

Pires Laranjeira

Centro de Literatura Portuguesa/Universidade de Coimbra

<pires.laranjeira@gmail.com>

 

 

Joana Ruas é uma escritora que viveu uma parte importante da sua vida em territórios como Angola, Guiné-Bissau ou Timor, muito perto ou até no interior das regiões de guerra, que associa ao carácter de militância cívica as técnicas de cronista e de investigação histórica e da memória, através dos documentos escritos e dos testemunhos orais. Documentou-se fartamente nas memórias colectivas e na construção das memórias individuais, passando pela sua própria experiência, cujo aperfeiçoamento um Maurice Halbwachs teorizou para efeitos de consciência crítica. Ganhou o pleno direito de integrar, pela sua seriedade, o galarim daqueles que, pela sua vida, pela prática da escrita, ilustram uma lusofonia plural, não de superfície e de efeito fácil, mas sim de inquirição do passado, num esforço de explicar, entretecendo vidas de papel sustentadas na História.

 

 
O livro Crónicas timorenses, de Joana Ruas, editado por uma nova chancela de Vila Nova de Gaia, a Calendário de Letras, é composto por quatro textos: “D. Manuel Salvador da Costa dos Remédios” (20 páginas); “O cofre e a espada” (36 páginas); “Folhas soltas no bosque” (53 páginas); e “Fulan Mutin (Branca Flor)” (137 páginas). Este conjunto de textos procura prolongar durante o século XX a análise que A batalha das lágrimas (2008) efectuava ao povo timorense, mas, neste caso, relativa somente ao seu começo. Ambos os volumes se subordinam a um título genérico: A pedra e a folha. A pedra da realidade bruta e a folha da (re)criação, representando a memória da crónica, ou a arte e a poesia de bem acolher o visitante pacífico e cansado das agruras da vida.

 

 As quatro “crónicas” são ficções baseadas na História de Timor-Leste, abrangendo um ciclo temporal sensivelmente desde a instauração da República em Portugal até meados dos anos 60, com ênfase nas eufemisticamente chamadas “guerras de pacificação” (que, na verdade, foram sempre guerras de extermínio e repressão odiosa, estendendo-se para além de meados do século XX), ou campanhas de ocupação do território e de esmagamento das revoltas populares e dos levantamentos dos reinos locais contra os ocupantes coloniais.

 

 
Num estilo despojado e cronístico, Joana Ruas apresenta fundamentações interessantes de usos e costumes, da História de Timor, com as várias etnias e religiões, países e ideologias políticas em convivência e confronto, ao longo de décadas, sobre um fundo de destruição e morte, do que resultou a construção de um novo Estado-nação. Por entre as lutas e o sofrimento humano, têm o seu lugar o amor e a poesia, tantas vezes com extrema delicadeza e comoção. Trata-se, além disso, de uma lúcida análise da condição feminina de subserviência aos homens e da teia de relações sócio-hierárquicas entre nativos e ocupantes do território de Timor, em que algumas personagens conseguem quebrar convenções, humanizando as relações por cima do rasto de violência.

 

É um livro de testemunho diferido, isto é, de apelo à memória dos acontecimentos históricos relacionados com a formação e o aparecimento de uma nova nação no mundo. Surge para nos lembrar os crimes que, caucionados pelo sistema colonial e pelas guerras locais ou mundiais, os portugueses, indonésios ou japoneses puderam perpetrar, assim como o assassinato avulso ou de grupos de pessoas inocentes do povo timorense, o exercício despótico e arbitrário do poder colonial, numa era de trevas em que a mulher – oriental, negra ou branca “de segunda” -, vivia como o elo mais fraco da cadeia e da pirâmide sociais.

 

No título do livro, a autora usa o termo “crónicas” para sugerir que estaremos em presença de textos que pretendem relatar factos, acontecimentos – que verificamos serem históricos – como se fossem crónicas medievais ou renascentistas. Mas o seu estatuto de escritora leva-nos a associar esse expediente à produção de textos ficcionais sustentados por factos históricos, como se quisesse, de um modo diferido, pela passagem do tempo, testemunhar através da ficção, como uma cronista diferida, como alguém que simulasse estar presente na época dos acontecimentos, e aí reside o fascínio deste tipo de ficção, que não se apresenta, contudo, como ficção histórica, ao contrário do longo romance A batalha das lágrimas, esse, sim, pretendendo recontar veridicamente a História dessa batalha e do seu contexto. Algo como tornar-se jornalista, testemunha ou partícipe através da ilusão da reconstituição, mas com a nota de a poesia e o estudo antropológico irromperem com regularidade. Não havendo lugar para o humor ou ironia, apropriados ao distanciamento típico do que é pós-moderno e fantasioso, enquanto excesso de fingimento, foi escolhido o tom sério e dramático da crónica testemunhal, ainda que esse género da crónica, no primeiro texto, sobre o Rei de Laleia e de Laclubar, esteja revestido de uma técnica próxima do fluxo de consciência, mais apropriada ao memorialismo quase intimista do protagonista-herói.

 

Estas ficções historicizantes não simulam o transporte perfeito e total do leitor para a época relatada, porque, como se comprova em “O cofre e a espada”, são referidos o timorense Fernando Sylvan e um seu texto, posteriores à época descrita, que teorizaram a formação do povo maubere e do fermento da Nação ao longo dos 400 anos em que duas formações sócio-políticas disputaram o poder por sobre as populações e suas culturas, originando o que o narrador chama “um mosaico inquietante de pessoas em trânsito (…) formando (…) combinações abertas ou rigidamente fechadas para sobreviverem” (p. 45). Com este mote, sabemos que a ficção não quer fazer de conta que as acções decorreram exactamente do modo narrado. Pelo contrário, a narrativa assume-se como ideologicamente marcada pela opção de mostrar como os poderosos da época destroçaram pessoas, famílias, clãs e bens e quais as consequências para aquela região. Trata-se, pois, de uma operação ideológica, pela via ficcional, de mostrar como os poderes estabelecidos (Igreja, governo local, líderes gentílicos, senhores de terras e militares), num processo histórico complexo e sanguinário, acabaram por edificar uma nova entidade política e uma nova identidade colectiva.

 

4 comentarios

  1. Terencio Moniz