Un adelanto (en português) del escritor y promotor cultural de São Paulo, Brasil, con algunos comentarios de sus colegas.
José Geraldo Neres é um desses escritores que fogem de tudo que possa parecer óbvio, está sempre em busca do desafio que os novos horizontes proporcionam. Enquanto a poesia brasileira contemporânea, boa parte dela, pelo menos, se enrosca num hermetismo estéril e inútil, numa autoprospecção egótica e metapoeticamente exibicionista, Neres submerge na memória, não na dele, mas na de todos nós, desprovido de parafernálias, ciente apenas de seu próprio fôlego, para trazer, do fundo do oceano obscuro, ostras contendo pérolas. Cabe a nós, leitores, abri-las para extasiarmo-nos com os seus poemas em prosa, gênero difícil, porque híbrido, e fascinante, porque completo. Olhos de Barro é isso: uma oferenda ao deus dos leitores inteligentes.
Luiz Ruffato
A poesia em prosa, incrustada em narrativas, ou em livros específicos, é uma das tradições contemporâneas. Basta lembrar Baudelaire, Rimbaud e Lautreamont, Saint John Perse, Edmond Jabès, Ponge, na França, ou Cruz e Souza e Murilo Mendes, no Brasil. Mas é uma tradição acidentada. Às vezes surge no meio de versos livres ou não, vem num livro isolado – lembro Bandeira, Drummond, Quintana, Ferreira Gullar, Cláudio Willer, José Alcides Pinto, entre outros. Este “Olhos de Barro” deve ser visto nessa perspectiva para que se perceba o que traz de novo, neste momento. Não pretendo aqui dar dicas, pois acredito na experiência própria de cada leitor, em seu diálogo livre com a obra a ser lida. As questões que provoca não são poucas nessa viagem pela infância e a descoberta das coisas. Um trabalho como este traz de volta, em primeiro lugar, a pergunta inaugural: o que é poesia, em que medida ela depende de convenções como a métrica, o verso livre, aliterações, rimas, para definir seus ritmos? Não é difícil encontrar versos nas prosas de José Geraldo Neres, qualquer leitor com certo traquejo percebe isso na leitura que se torna mais interessante, mais matizada e coloca a música das palavras num fluxo parecido com o da vida. Certa vez chamaram “Os Cantos de Maldoror” de romance. E não pode ser? Este livro também poderá ser lido como uma novela densa e lírica, com seus prismas dançantes diante dos olhos alumbrados dessa fantasmagoria chamada infância. Mas não será esse um modo de recuperar a poesia dos desgastes? De fazê-la novamente livre como foi num passado inatingível, em que os poetas, com a devoção mística do começo do mundo, caçavam o discurso no vento?
Moacir Amâncio
(O TEXTO ENTRE PAREDES)
Tanto quanto a um Prometeu acorrentado à procura de imagens que implodam o inaudito, este novo José Geraldo Neres se vincula também a uma outra mitologia: a do Gênesis. O barro, aqui, para além de incluir os jogos da infância, as brincadeiras em torno da construção da casa e dos outros, carrega o grão mítico da criação, o que engendra os olhos capazes de inaugurarem um inesperado mundo novo – mercê do nome, mercê dos modos outros de designação.
“Hijos del limo” (como na linhagem poética identificada por Octavio Paz), as miradas destes “olhos de barro” (para dentro ou para fora de si) brotam outras palavras, “outros silêncios”: signos soltos à deriva, frases escuras e emparedadas, palavras difíceis que se transubstanciam em odores, sombrios vocábulos no encalço da luz, falas de outros poetas, nomes – poesia, poesia, poesia…
Um homem, aprisionado ao seu corpo (esconderijo, labirinto, poço escuro, clausura) busca uma saída: ser muitos. E então os nomes, como que eclodindo do útero primevo, pródigos ainda da terra úmida, despontam na página e transbordam para todos os lados. E brincam de esconde-esconde, misturam-se ainda à água e se rebatizam – encontram-se em estado de infância. Tateiam o mapa do seu futuro, consultam bússola e diretrizes, discutem, dialogam, emprestam-se, perscrutam as fronteiras, constróem sua morada. E praticam o sacrifício.
Porque o regime que aqui vigora para a obtenção da liberdade e do verbo é o de penitências – entrelugar de tormentas, de espelhos cegos, de muros cerrados; do palco, do teatro, da cena, do disfarce – sob um tempo implacável de relógios, silêncios e sombras.
O corpo é o eixo da nomeação. Ele é a casa da palavra, o texto habitável, o teto sob o qual o rito se cumpre pacientemente. Janelas e portas, quarto e cômodos, cortinas e paredes, chão e pedras e chaves (ou corpo, pele, rosto, boca, dentes, riso) – são os pontos cardeais da fortaleza a ser assaltada ou preservada, escapes ou aberturas para a instauração dos nomes e das imagens, conforme se dê o embate com o outro, conforme a palavra-de-ordem para cada caso, para cada acaso.
A poesia é uma operação que demanda calma, controle, serenidade, conhecimento do limiar, experiência do limite. E ela se dá sob a égide de uma semântica que percorre subrepticiamente a mais notável referência sacrificial do Ocidente, apropriando-se desta a seu bel prazer (invertidamente, muitas vezes), para reinvocar a dor, a dúvida, o erro, o medo, a culpa, a queda; a cruz, as chagas, as feridas, as lágrimas, as marcas; o tributo a ser pago, a condenação; o cálice, a corda, o veneno, o sangue, a morte. Mas também o prodígio da ressurreição.
Os santos, os anjos, os milagres, os cordeiros, a igreja, o terço e a profecia hão de conduzi-la à palavra eleita, ao ventre de deus, ainda que a poesia seja esse “deus vermelho” a escorrer da boca do mesmo corpo imolado. É assim que “suas unhas” varrem “uma tempestade para detrás da porta”, que “o voo dos cordeiros não termina em mim”, que os “pássaros” têm “quatro folhas”, que no “meu corpo carrego as (…) escamas dos pecadores”, que a infância é um “pássaro embalsamado” e que “as pedras são ramos de água”. Afinal, “qual o lado da noite que umedece primeiro?” Afinal, que parênteses podem conter este corpo – este texto?
Maria Lúcia Dal Farra.